São Tomás de Aquino em defesa do matrimônio

Por São Tomás de Aquino 


CAPÍTULO CXXII
POR QUE A SIMPLES FORNICAÇÃO É PECADO CONTRA A LEI DIVINA E POR QUE O MATRIMÔNIO É NATURAL

1. Depreende-se do exposto que é vã a razão apresentada pelos que afirmam que a simples fornicação não é pecado.

Com efeito, assim se expressam: se há uma mulher sem marido, não subordinada ao domínio de alguém, seja do pai ou de qualquer outra pessoa; se alguém dela se aproximar desejando-a, não lhe faz injúria porque isto a ela agrada e, mesmo, ela tem direito de usar do seu corpo. Também não faz injúria a alguém, porque se supõe que não esteja sujeita ao domínio de outra pessoa. Por isso, não parece que este ato seja pecado.

2. E também não parece uma razão suficiente a de quem diz que a fornicação faz injúria a Deus. Ora, como foi dito, Deus não é por nós ofendido senão quando agimos contra o nosso bem. Mas não parece que isto contradiga o bem do homem. Logo, por ele não se injuria a Deus.

3. Igualmente, não parece ser resposta suficiente afirmar-se que pela fornicação injuria-se ao próximo, pelo escândalo que se lhe causa. Pois, algumas coisas que em si não são pecado levam os outros a se escandalizarem deste modo, são pecados acidentalmente. No entanto, aqui não estamos tratando da fornicação enquanto é acidentalmente pecado, mas enquanto ela é pecado em si mesma.

4. Deve-se buscar a solução no que acima está exposto. Com efeito, foi acima dito (cc. CXII ss), que Deus cuida de cada coisa segundo aquilo que para ela é bom. Ora, é bom para cada coisa atingir o seu fim, e lhe é mau ser desviada do devido fim. Como no todo, também nas partes isso deve ser considerado, de modo que cada parte do homem, e cada ato seu, atinjam o seu devido fim. Ora, o sêmen, embora seja supérfluo à conservação do indivíduo, é necessário para a propagação da espécie. Mas, as outras coisas supérfluas, como os excrementos, a urina, o suor, etc, para nada valem e, por isso são um bem para o homem somente enquanto expelidos. Mas não só isso é procurado no sêmen, pois ele é expelido em utilidade da geração, e para esta se ordena também o coito. No entanto, seria vã a geração de um homem se ela não fosse acompanhada da nutrição, porque o homem gerado não sobreviveria se lhe fosse retirado o alimento de que precisa para viver. Por isso a emissão do sêmen é ordenada para que se lhe siga a conveniente geração e a educação do homem gerado.

5. Pelo que se vê que toda emissão de sêmen, realizada sem que se siga a geração, é contra o bem do homem e, quando isto acontece propositadamente, é pecado.

Refiro-me aqui ao ato pelo qual a geração não se possa seguir naturalmente, como acontece em toda emissão do sêmen sem a união do homem e mulher, razão porque tais pecados são chamados de pecados contra a natureza. No entanto, acidentalmente, se a geração não pode vir após a emissão do sêmen, neste caso não se diz que é contra a natureza, nem é pecado, como, por exemplo, quando a mulher é estéril.

6. Deverá ser igualmente contra o bem do homem se o sêmen for emitido de tal modo que se siga a geração, mas que a educação da prole seja impedida. Deve-se ainda considerar que, nos animais em que só a fêmea é suficiente para a educação da prole, o macho e a fêmea, após o coito, não mais convivem, como acontece, por exemplo, nos cães. Mas em todos os animais em que a fêmea não é suficiente para educar a prole, o macho e a fêmea convivem até quando for necessário para a educação e instrução da prole, como se verifica, por exemplo, em algumas aves, cujos filhotes não podem buscar o alimento logo após o nascimento. Com efeito, as aves não nutrem os filhotes com leite, que logo surge como preparado pela natureza, como acontece nos quadrúpedes, mas devem buscar fora o alimento para os filhotes. Além disso, elas, ao chocarem, aquecem-nos e, para tal, não é suficiente só a fêmea. Por isso, pela providência divina é natural nesses animais que o macho permaneça com a fêmea para a educação da prole.

Ora, é evidente que na espécie humana de nenhum modo a fêmea seria suficiente para a educação da prole, porque a satisfação das necessidades da vida humana exige muitas coisas que não podem ser alcançadas por uma pessoa. Por isso, é conveniente, segundo a natureza humana, que o homem conviva com a mulher após o coito, e dela não se afaste imediatamente, indiferente ao que venha acontecer, como acontece com os fornicadores.

7. Mas este argumento não anula a possibilidade de a mulher sozinha alimentar filho, sendo ela muito rica, porque a retidão natural dos atos humanos não se pauta por aquilo que acontece acidentalmente em um indivíduo, mas por aquilo que atinge toda a espécie.

8. Deve-se também considerar que, na espécie humana, a prole não necessita somente da nutrição corporal, como acontece nos outros animais, mas também de instrução espiritual. Com efeito, os demais animais recebem da natureza a orientação pela qual podem cuidar de si. O homem, porém, vive segundo a razão e só se põe sob sua orientação após longo tempo de experiência. Por isso, é necessário que os filhos sejam orientados pelos pais que já tiveram experiência. Além disso, os filhos não são capazes de receber instrução logo após o nascimento, mas só após longo tempo, quando atingem o uso da razão, e também esta instrução exige longo tempo. Ainda mais, por causa dos impulsos passionais que corrompem o juízo da prudência, (VI Etica 5, 1140b; Cmt 4, 1169 ss.) necessitam eles não só de instrução, como também de repreensão. Para isto, a mulher sozinha não é suficiente, mas necessita da colaboração do marido, no qual há mais sabedoria para instruir e maior força para castigar. Por isso, na espécie humana, é necessário que se insista no acompanhamento dos filhos não por pouco tempo, como entre as aves, mas por um longo espaço da vida. Por conseguinte, como é necessário que em todos os animais o macho conviva com a fêmea até quando for necessária a ação do pai em benefício da prole, é também necessário ao homem que a sociedade do esposo com a esposa seja diuturna, e não breve. Por esta razão chamamos esta sociedade de matrimônio. Logo, o matrimônio é natural ao homem, e o coito fornicário realizado fora dele é contra o bem do homem, razão por que deve ser pecado.

9. E não se deve julgar que é pecado leve alguém procurar a emissão do sêmen fora do débito da geração e da finalidade da instrução, ou porque seja leve, ou, mesmo, por não ser pecado, se alguém usa de uma parte do seu corpo para um uso não ordenado pela natureza, como, por exemplo, andar com as mãos, fazer com os pés o que deve ser feito com as mãos, porque, por esses usos desordenados, o bem do homem não é totalmente impedido. Mas, a desordem na emissão do sêmen re­pugna ao bem da natureza, que é a conservação da espécie. Por isso, após o pecado de homicídio, que destrói a natureza humana, já existente em ato, este gênero de pecado parece vir em segundo lugar, pois por ele é im­pedida a geração da natureza humana.

10. As coisas acima ditas são confirmadas pela autoridade divina. Com efeito, é ilícita a emissão do sêmen da qual não pode vir a prole e se lê na Escritura Sagra­da: Não te deitarás com um homem como se faz com mulher (Lv 18, 22); Nem os masturbadores, nem os invertidos possuirão o reino dos céus (1Cor 6, 10).

Também é evidente que todo coito realizado fora do corpo da própria esposa é ilícito, pois está escrito na Sa­grada Escritura: Entre os filhos de Israel não haverá me­retrizes; nem efeminados entre os filhos de Israel (Dt 17, 23); Evita toda fornicação, e fora da tua esposa não te afeiçoes a prática do que é criminoso (Tb 4, 13); Foge da fornicação (1 Cor 6, 18).

11. Por esses argumentos refuta-se o erro dos que afirmam que, na emissão do sêmem, não há maior pecado do que na emissão das demais coisas supérfluas, e dos que dizem que não há pecado na fornicação.


Fonte: São Tomás de Aquino – Suma Contra os Gentios, Livro III 

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